quinta-feira, 3 de junho de 2010

BALAS, SEBO E UMA GUERRA...

O LEVANTE DOS SIPAIOS


De a índia ser um lugar exótico isso nã
o se discute, com uma colorida história de civilização que remonta milênios. Dona de religião, lendas, mitos e culinária fascinante, berço de uma das mais antigas línguas do mundo: o sânscrito, com obras épicas colossais como o Ramayana e o Mahabharata, além do popular tratado sexual Kama Sutra, certo? Mas também foi palco de uma sangrenta revolução nacionalista que começou com... Ojeriza a sebo.



CAUSAS DA REVOLTA


A região do subcontinente Indiano (e o oriente em geral) sempre foi motivo de disputa comercial na Europa
, saindo os portugueses na frente com certa vantagem em conquistar territórios, tendo em 1498 Vasco da Gama chegado a Calicute na Índia (é só observar até hoje o idioma português falado no enclave de Goa), inaugurando a corrida pelos tesouros do extremo oriente. A Companhia das Índias Orientais terminou com o monopólio português (principalmente das especiarias usadas na época como temperos e conservantes) de mais de 100 anos em meados do começo do século XVII.
Os ingleses passaram a exercer seu domín
io sobre a Índia no séc. XVIII, tornando-o mais efetivo no século XIX. Além do poderio militar foi importante para isso uma série acordos com os estados hindus divididos entre dinastias de Rajás, Marajás, e Nababos (os "Estados principescos" que em 1858 somavam 562) que mesmo com a presença incômoda dos europeus, continuavam a ser dirigidos por estes príncipes até que lhes impuseram a doutrina de preempção (doutrine of lapse).
Idealizada pelo governador inglês Dalhousie (Governador-Geral da Índia de 1848 a 1856) no séc. XIX, a doutrina de preempção submetia à chancela inglesa a sucessão ao trono dos herdeiros e sucessores nos estados dos monarcas sem filhos ho
mens legítimos. E em caso de negativa aglutinando os territórios e as riquezas dos rajás as possessões da coroa inglesa (por exemplo as jóias da Família Real de Nagpur foram leiloadas publicamente em Calcutá). Tal política, necessária por causa das dificuldades financeiras da Companhia das Índias, foi lançada depois desta derrotar os Siques do Punjab e anexar a Birmânia. Assim se expandido para aumentar seus lucros, proibiu a alguns dos filhos adotivos em alguns estados independentes de assumirem os cargos vagos, vindo os ingleses a anexar mais que uma dúzia de Rajes independente entre 1848 e 1854.
Os ingleses se intrometeram também nos milenares costumes locais, como o costume funesto do Sati ou Suttee (que consistia na viúva acompanhar o marido morto e imolar-se na sua fogueira funerária), o casamento entre crianças, e o culto dos Tugues à deusa multibraços Kali e seus sacrifícios humanos que vitimaram mais de um milhão de pessoas, mortas por estrangulamento. Presume-se que o último Tugue tenha sido enforcado em 1882. O termo Tugue vem do sânscrito e quer dizer "enganador", pois atraíam suas vítimas para a morte através de engodos. O antigo sistema de educação das Pathshalas (ou escolas de aldeia) foi paulatinamente sendo destruído, privando os indianos de sua educação tradicional. No caldeirão onde fervilhavam os elementos da revolução fermentavam as queixas dos indianos frente ao desrespeito aos seus costumes sociais, a destruição das suas dinastias reais, taxas e impostos altos, acusações de maus-tratos e torturas por parte dos colonialistas.
Ainda circulava entre o populacho o boato de que os ingleses procuravam destruir sua cultura, religião, e convertê-los ao cristianismo. Isso era um mesmo um fato, pois o representante da Companhia das Índias Orientais, Sr. Mangles, discursou no Parlamento em 1857 falando sobre a Cristianização da Índia, bem como os escritos do Reverendo Kennedy sobre a necessidade da Índia se converter. Os missionários ingleses na Índia faziam agressiva campanha doutrinária entre os mais pobres e famintos. Havia também uma profecia que marcava o fim do governo da poderosa Companhia Britânica das Índias Orientais ao término de 100 anos, e isso ocorreria justamente no ano de 1857 (a companhia havia tomado a Índia como um câncer monopolizando o seu comércio e apropriando-se das riquezas, tendo como lastro para isso respeitável poderio militar e administrativo, possuindo 3 administrações coloniais regionais). Estava criado o ambiente de descontentamento popular que levaria a revolta de 1857. Necessitava-se apenas de um pretexto, e este foi religioso.


UM DOS PIVÔS DA REVOLTA DOS SIPAIOS: O MOSQUETE ENFIELD 1857



A presença de nativos nas tropas de sua majestade era imprescindível, pois sua resistência física, robustez, e rusticidade eram sempre úteis, a sua obstinação também era um problema para as autoridades inglesas. Mas eles conheciam e estavam adaptados as rudes e inóspitas condições do terreno, então eram um mal necessário, além de poderem ser recrutados em grande número. Os soldados hindus, muçulmanos e outros, a serviço dos ingleses eram chamados de Sipaios (termo que vem do híndi Shipahi, "soldado", e que também pode ser grafado como Sipais, Cipais, e Cipaios). Havia cerca de 200.000 Sipaios do exército da Companhia Britânica das Índias Orientais, contra 40.000 britânicos.
Apesar de numerosos os Sipaios tinham vida dura, recebiam um salário (soldo) pequeno, tinham de pagar do bolso as despesas de transporte quando viajavam em serviço, e havia internamente discriminações às castas sociais inferiores aos brâmanes e xátrias. A insatisfação piorou quando em 1856 os Sipaios foram obrigados a servir em ultramar durante uma guerra na Birmânia. A tradição hindu dizia que os de castas mais altas que “viajassem sobre as águas negras” perderiam a sua posição e seriam considerados párias nas suas comunidades. Assim era permitido que os Sipaios mantivessem dentro do exército as mesmas tradições e costumes de suas etnias ou religiões.
Poderia se dizer que as armas inglesas em determinado período foram pensadas e construídas em íntima relação com a fauna das colônias na África e Índia. Enquanto a caça na velha Albion se classificava como leve, servindo a este propósito espingardas e fuzis de calibres menores, os felinos, elefantes e demais peças de caça das colônias exigiam fuzis muito potentes (vide os primeiros e brutais fuzis express de antecarga, e os posteriores de retrocarga em calibre .600 e .700 nitro para elefantes). Os ingleses também sempre procuraram manter seus exércitos equipados com as melhores armas, principalmente nas colônias, pois a violência e resistência dos nativos locais eram legendárias, necessitando de projéteis de potência considerável para deter tais homens (tempos depois isso culminaria na filosofia dos cartuchos “manstopper” para fuzil e revolver).
Para substituir as P-1839 Tower Musket e as British Pattern 1842 de percussão e cano liso foi adotado o mosquete raiado Enfield Pattern 1853 Rifle-Musket (também conhecido como Enfield Pattern 1853, ou para os mais íntimos Enfield P53 ou apenas P53). Este era uma arma de antecarga com sistema de percussão, cano de 39 pol. com alma raiada (3 raias, com passo de 1:78” que sofreram mudança na profundidade em 1858), calibre .577. O cano tinha três braçadeiras de metal, sendo um dos nomes deste modelo entre os colecionadores internacionais "três bandas" (para diferenciá-lo da versão menor 2 bandas de 1858, adotada pela Real Marinha Inglesa). Pesava 4.3 kg descarregado. A alça de mira era ajustável para 100, 300, e 400 jardas, possuindo uma segunda lâmina para distâncias maiores graduada (a depender do modelo) de 900 até 1250 jardas. Foi usado de 1853 até 1867 em 4 versões com diferenças mínimas de braçadeiras, miras e comprimentos de canos (sub-variantes 1º modelo, 2º modelo, 2º modelo do contrato Windsor, 3º modelo e 4º modelo). Foi substituído pelas armas de retrocarga e cartucho de metal, sendo muitos os Enfield P53 convertidos para o sistema Snider de cartucho metálico.
O estopim da revolta dos Sipaios absurdamente foi o cartucho desta arma (referindo-se aqui a munição não metálica de espoleta desengastada, “cartucho”, vem do italiano cartuccia – carta- e nesta época significava o embrulho de papel que continha a carga de pólvora e o projétil. Sendo que o projétil ficava na parte inferior do cartucho com a ponta virada para a carga de projeção).
Os cartuchos da P53 continham 69,4 grains de pólvora negra (inicialmente do tipo RFG, depois G, e finalmente J2), e a “bala” era normalmente uma com peso de 530 grains (34,3 g) podendo ser uma do tipo Enfield / Pritchett. Este tipo de projétil foi desenvolvido por William E. Metford sendo uma modificação da bala de Minié, o que resultou num projétil cônico de laterais retas sem canaletas de lubrificação e base oca, que possuía “paper patcht” oleado. O conceito era o mesmo da minié: que o fundo se expandisse e se deformasse contra o raiamento pela pressão do gás na cavidade.

Bala tipo Pritchett moderna

Esta bala foi apresentada ao governo inglês pelo armeiro Richard Ellis Pritchett, e foi adotada como projétil Metford/Pritchett, e foi testada em campo na Guerra da Criméia onde o P53 foi considerado de precisão inferior aos P-51, sendo que para atender a demanda as trabalhosas balas Pritchett, (que eram feitas pelo sistema de compressão e não fundidas, pois assim se garantia o peso e o perfil perfeitos) foram substituídas em parte pelas tipo Minié, com a tradicional cunha de ferro na base oca do projétil para aumentar o seu diâmetro fazendo-o se engastar no raiamento. Embora deva se fazer a ressalva que este tipo de projétil podia se fragmentar na boca do cano, sendo relativamente perigoso. Assim a escola de tiro de Hythe testou e adotou para o mesmo fim uma peça semelhante feita de madeira de buxo, e em 1864 o Cel. Edward Boxer (o inventor das espoletas que levam seu nome) propôs que se usasse uma cunha de argila, sendo que este tipo foi considerado o ideal para o serviço inglês. Em 1858 o calibre reduziu-se de 14,42 para 13,97 mm sem perda significante de precisão, com aumento da facilidade de recarga. A velocidade na boca do cano era de 850-900 pés por segundo (280m/s) com uma energia cinética de 150 kgm na boca do cano.
O cartucho de papel do Enfield .577 (que era composto por 3 camadas de papel tipo Whitefine), era usado rasgando-se o topo do invólucro, despejando-se a pólvora no cano, colocava-se a base do cartucho (contendo o projétil) e em seguida, rasgava-se o excesso de papel na ponta do projétil, servindo o papel de bucha entre o projétil e o raiamento. Para evitar que a umidade deteriorasse a carga de pólvora, o cartucho era inserido num banho lubrificante composto por uma mistura de 50% de cera e 50% de gordura animal (os projéteis de Enfield .577 usados na guerra civil dos EUA tinham a mesma composição de lubrificação). Aí residia o cerne da questão que se espalhou entre os Sipaios: a gordura animal usada na impermeabilização e lubrificação dos cartuchos ou devia vir do boi – animal sagrado para os hindus - ou era banha de porco - animal imundo para os soldados muçulmanos (uma terceira fonte afirmava que na verdade era gordura de carneiro, animal neutro para as 2 religiões). Alguns historiadores culpam em parte a predominância das castas mais altas no Exército de Bengal pelo motim, como se poder ver nesta história corrente sobre o seu início. Dizem que em algum momento no fim da terceira semana de janeiro de 1857, um khalasi, (trabalhador), abordou um Sipaio de origem Bramâne (casta alta) e pediu um gole de água de seu lotah (panela de água). O Bramâne recusou devido a sua posição superior de casta. O khalasi então disse: "Você logo perderá sua casta, pois você vem mordendo cartuchos cobertos com o gordura de porcos e vacas".
Como na época era costume entre os exércitos mundiais rasgar o papel do invólucro do cartucho com os dentes (por esta mesma razão por muito tempo foi uma exigência de recrutamento que o candidato a soldado tivesse dentes, e isso não é piada não!!), fatalmente se tocava os lábios na graxa de lubrificação do projétil/cartucho que era composta com gordura animal. Aliás, havia mesmo a determinação em manual que “ sempre que a graxa em torno do projétil parecesse estar derretida, ou caso contrário mesmo removida do cartucho, os lados do projétil deviam ser molhados na boca antes de se por o projétil no cano; a saliva servirá ao propósito de graxa." Assim para ambas as castas de guerreiros, com este ato se cometia pecado contra suas respectivas religiões!
Uma correção deve ser feita: é comum encontrarmos principalmente em textos em inglês sobre o levante dos Sipaios de 1857, que a arma causadora da "quizumba" seria o fuzil Lee-Enfield, o que é um equivoco inexplicável, pois o Lee-Enfield de repetição por ferrolho entrou em serviço em 1895 substituindo o fuzil Lee-Metford adotado em 1888. Usava a famosa munição .303 British de cartucho metálico, que sendo um invólucro hermético contra umidade obviamente não necessitava de ser lubrificado externamente com sebo ou gordura.
Deve-se lembrar que lubrificantes (sintéticos obviamente) são usados até hoje em projéteis de chumbo para se evitar o chumbamento da alma do cano (sujeira por resíduos de chumbo), o que prejudicaria fatalmente a precisão.
Apesar dos britânicos afirmarem depois (obviamente para contentarem os nativos) que os projéteis .577 eram lubrificados com cera de abelha ou óleos vegetais, e quando os aconselharam aos Sipaios que eles próprios lubrificassem os seus cartuchos e projéteis usando o que melhor lhes aprouvesse, pareceu mais claro ainda que os ingleses tentavam conspurcá-los com substâncias impuras. A ordenança tentou em vão mudar a técnica de abertura do invólucro, sugerindo que os soldados deixassem de morder e passassem a rasgar o papel do cartucho com os dedos, mas a dificuldade na hora de carregar a arma aumentou. Curiosamente depois do motim indiano os manuais ingleses de infantaria mudaram o método de abrir o cartucho de papel, preconizando que se usasse o dedo indicador e dedo polegar da mão esquerda, e com o braço perto do corpo, cuidadosamente se retirasse a parte superior do cartucho sem derramar a pólvora.
No geral a maioria dos oficiais britânicos desprezava tal problema, o que aumentava a raiva dos hindus, finalmente em janeiro de 1857 um dos regimentos lotado próximo a Calcutá se recusou a usar a munição “impura”, e em 25 de fevereiro o 19° regimento se amotinou em Berhampore inclusive com um de seus homens disparando contra um oficial. O 34° Regimento em Barrackpore se rebelou em 31 de março. Os Sipaios envolvidos no episódio foram punidos com severidade sendo condenados a dez anos de trabalhos forçados, e dissolveram-se os regimentos. A rebelião de fato se iniciou em 10 de Maio de 1857 com o 11° regimento de cavalaria Sipaio do exército de Bengala, em Meerut libertando os integrantes do 3° regimento de cavalaria leve, que estavam encarcerados por se recusar a usar os cartuchos de Enfield. O 20° regimento de cavalaria também se juntou ao motim.
O banho de sangue teve início com o assassinato de todos os europeus do lugar (não importando idade ou sexo), e dos indianos cristãos. Os rebeldes marcharam contra Deli logo em seguida onde obtiveram mais reforços, massacrando novamente os europeus e cristãos, bem como atacaram a guarnição inglesa local. O norte e o centro da Índia arderam em chamas, e a luta durou um ano (mas as escaramuças que seguiram ao fim do levante durariam mais tempo), sendo que muitos regimentos de Sipaios e vários principados aderiram ao motim, em contrapartida muitos soldados nativos e outros principados se mantiveram fieis aos britânicos. Os revoltosos se colocaram sob a tutela do último imperador Mogol Bahadur Shah.
A campanha de terror continuou em Kanpur (Cawnpore), onde o General Wheeler resistiu durante três semanas com pouca água e comida. Um dos lideres da rebelião, Nana Sahib prometeu-lhe salvo-conduto, e os britânicos e famílias em 27 de junho 1857 fizeram a retirada via barco, sendo massacrados nos bancos do rio. As mulheres e crianças sobreviventes foram feitas prisioneiras pelos rebeldes, e em 15 de julho quando Cawnpore ia ser evacuada, foram mortas a golpes de facas e machados. Tendo os sipaios se recusado a assassiná-las, sendo a carnificina levada a cabo por dois açougueiros muçulmanos, dois camponeses hindus e um guarda-costas de Nana Sahib. Os britânicos jamais esqueceram Kanpur.
A contra-ofensiva inglesa derrotou o grosso das tropas rebeldes perto da cidade de Deli, ajudados por soldados das etnias Sique, Patchun e os famosos Gurcas nepaleses (o rei do Nepal na ocasião teria enviado milhares de homens para lutar ao lado dos ingleses, ao lado dos 1.500 que já faziam parte de algumas unidades pertencentes a Cia. das Índias). Deli caiu após semanas de luta encarniçada, e os ingleses massacraram uma grande quantidade de civis a golpes de baioneta, um jovem oficial em suas memórias diz que jamais esqueceria dos gritos das mulheres ao ver os maridos e filhos sendo mortos. Bahadur Shah foi preso e seus filhos executados pelos ingleses. O último imperador Mogol, coroado imperador da Índia pelos revoltosos morreu no exílio em Burma. Logo em seguida cairia Lucknow. Combates importantes também ocorreram em Awadh, Jhansi e Gwalior.
O sul da Índia por razões étnicas, religiosas e políticas, decidiu permanecer fora do conflito. A revolta falhou pela óbvia falta de homogeneidade política, pois cada grupo racial tinha seus próprios interesses, faltava clareza de intenções e unidade de comando.
Os Sipaios sobreviventes foram executados, e a ordem era não fazer prisioneiros, e os poucos eram executados depois. A vingança inglesa não poupou nem indefesas aldeias de civis, e algumas foram eliminadas inteiras por serem pró-rebeldes.
Um nome importante do panorama do mundo das armas foi o Cel. inglês George Vincet Fosbery, mais conhecido pelo revólver automático que projetou. Ele entrou para o exército de sua majestade em 1852 e servia no 4º Regimento Europeu de Bengala. Combateu no levante dos Sipaios e tempos depois seria condecorado com a Victoria Cross pela bravura em combate demonstrada no episódio acontecido em 30 de outubro de 1863, quando comandou a sua fração de tropa na tomada do Rochedo Picquet.
Uma história que li na infância sobre a revolta dos Sipaios e que me marcou muito foi o "Anjo de Jaipur" um conto (?) fantástico na antiga revista Kripta nº 48, de Junho de 1980 sobre um tenente aviador inglês da primeira guerra mundial que entra numa estranha neblina e num lapso temporal (improvável não associar com Triângulo das Bermudas, Einsten & e física quântica... intrigantes), sobrevoa com seu Avião Sopwith Camel em 1918 a guarnição inglesa de Jaipur cercada pelos rebeldes em 1857, e salva seu próprio pai da morte certa. Os oficiais ao ouvirem o seu relato obviamente o tratam como louco até que entra um sargento mecânico e diz que o avião está todo perfurado de balas... Que não se usam desde o levante indiano! A estória (tratada como fato verídico) ainda diz que todos os sobreviventes reconheceram em um biplano inglês da 1ª guerra a besta que sobrevoou o forte naquele dia, salvando os poucos soldados ingleses restantes... Deliciosas memórias.
Como efeito prático mais visível, a revolta ocasionou o fim da Companhia Britânica das Índias Orientais, passando a administração da Índia a ser exercida pela própria Coroa britânica (O Raj britânico), com as figuras de um secretário de Estado e de um governador-geral (chamado de vice-rei) para a Índia. A Rainha Vitória foi consagrada em 1877 como Imperatriz da Índia e os britânicos lá permaneceriam ate 1947...
Este conflito acende paixões e reabre velhas feridas até hoje. Na Índia e no Paquistão o chamam de "Guerra de Independência de 1857", já os ingleses o chamam de " A Insurreição ou o Motim indiano", "O Grande Motim indiano", "Revolta, Motim, ou Rebelião dos Sipaios ", "Guerra dos Sipaios", ou ainda "Rebelião ou Revolta de 1857". Alguns preferem chamar de "A Revolução indiana de 1857". Deve-se constar que o termo “Motim Indiano” ou congênere, ofende a maioria dos Indianos que vêem nisso menosprezo ao esforço de seus antepassados para se libertar do jugo inglês.
E no que se refere ao fuzil Enfield 53 e sua participação na revolta dos Sipaios de 1857 poderia se dizer sarcasticamente que a característica mais mortal da sua bala .577 foi a sua cobertura sebosa, que teve o condão de deflagrar uma guerra...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O ARSENAL DOS CORONÉIS




o poder de fogo dos caudilhos...


Durante toda a minha infância passei as férias escolares na fazenda de meu querido e saudoso avô materno, o Sr. Aurelino “Toquinho” Avelino de Carvalho, na divisa BA/MG. Ouvia extasiado as estórias que ele, os amigos dele e os agregados da fazenda contavam. Inclusive as maravilhosas estórias das noites em que “seu” Anísio (um bisneto de escravos) ia à sede da fazenda contar. Ainda sinto o cheiro saboroso do café fresco no fogão a lenha (acompanhado de certa dose de fumaça é claro), ouvindo com os olhos esbugalhados de menino curioso mais uma história de assombração (as macabras estórias sobre as “visagens da estrada”, dos defuntos que vinham dar botijas de ouro, sobre os espectros dos pistoleiros arrependidos ou não, e das suas vítimas chorosas ou furiosas, dos lobisomens, mulas-sem-cabeça,caiporas & cia.) e de depois ir dormir quase se borrando de medo, se “ribuçando” (cobrindo) da cabeça aos pés, enquanto ouvia os ruídos da natureza e das criaturas da noite, iluminando as trevas do quarto com a luz bruxuleante do candeeiro a querosene (objeto hoje quase em extinção)... Estórias coloridas de tempos passados, da época que os bichos falavam, das aventuras de Pedro Malasarte (um personagem de histórias folclóricas populares que era um renomado e sagaz picareta, que sempre se dava bem), de caçadas memoráveis, e é óbvio que também estórias dos tempos dos coronéis, jagunços e pistoleiros, tanto os de Minas como os da Bahia (dos quais falarei com mais detalhes por ser meu estado natal). Estórias cheias de violência, de folclore e misticismo como o “corpo fechado”, dos pactos com o demônio para obter riqueza, das vinganças cruéis, das tocaias, dos casarões mal assombrados e cheios de projéteis incrustados nas paredes de quase 1 m de largura feitas com tijolos de “adobão” cozido. Lembro-me de fragmentos das histórias contadas sobre o Coronel Marcionílio Antônio de Souza, que foi compadre de meu bisavô Teófilo Carvalho (fazendeiro na região de Maracás/Ba), como por exemplo, as que diziam que quando Marcionílio ia visitar meu bisavô, seus capangas ficavam na porteira da fazenda, e quando entravam na propriedade “tinham de abaixar as carabinas” em sinal de respeito. Ou uma que é de uma malvadeza que poderia ser imputada a qualquer um deles: o coronel recebeu um recado na sua fazenda. Convidou o mensageiro a ficar para o almoço, e no meio deste, notou que enquanto todos comiam (naquelas mesas antigas e maravilhosas, feitas com imensa pranchas de madeira sem emendas de 3/4 m) o convidado não parava de olhar pra os lados e procurar alguma coisa. A um gesto do “home” todos pararam de comer (além da família, uma pá de jagunços estava numa sala contígua).
- Tá lhe faltando alguma coisa?A comida não está boa?
- Ah seu Coronel , tá tudo muito bom mas falta o “mió"...
- “De maneiras” que, o que seria o “mió” pro senhô?
- Ah seu Coronel, era bom uma pimentinha...


O “homem” calmamente mandou retirar a mesa inteira, e mandou trazer uma gamela de jabá bem salgado, um litro de farinha e um de pimenta bem vermelha e curtida!!!
- Pode comer agora sua pimenta a vontade!! O Infeliz ainda tentou abrir a boca para argumentar, mas dois jagunços se chegaram para perto engatilhando as suas carabinas papo-amarelo 44. O camarada comeu o jabá entupido de sal, com bastante pimenta e farinha, e quando já estava revirando os olhos, o coronel mandou parar.

- Isso é pra o sinhô não ser mal-educado e não exigir nada na casa dos outros quando é convidado. Suma de minha frente enquanto pode!

Diz o povo que o camarada saiu voando ladeira abaixo, chegou ao açude no pé da
ladeira, abaixou a cabeça e bebeu como um boi. Dizem que morreu algum tempo depois com os intestinos cortados pelo sal... Ou as histórias do Cel. Clemente da Vazante que tinha a seu serviço mais de 100 homens, que moravam em casinhas espalhadas numa serra, e quando era necessário reunir toda a “tropa” era usado um búzio marinho de grandes proporções soprado a guisa de trompa. Eu mesmo cheguei a conhecer um Coronel, ele já estava no fim da vida, enfermo numa cama, a barba absolutamente grisalha lhe descia até o peito, lhe dando aparência de “santo”, prometeu a mim e ao meu irmão uma “repetição de papo amarelo” (carabina Winchester 1873), das muitas que devia ter tido... Embora naquela altura, das centenas de alqueires que ele possuíra, só restava mesmo a outrora majestosa fazenda que possuía ainda as 4 casas, e uma “venda” (armazém onde os empregados certamente se endividavam) reunidas em torno de uma praça central. Curioso citar que uma destas casas estava vazia e diziam que era mal-assombrada, se escutando a noite gritos, gemidos, e disparos de armas de fogo. Ela possuía um porão aterrado (me disseram que era um arsenal, será?) Contava o velho Cel. Horácio Machado em suas lembranças que viu nos bons tempos os “turcos” passar com as bruacas (bolsas de couro cru para levar cargas em lombo de burro) cheias de pedras preciosas retiradas dos garimpos das velhas Minas Gerais.


O coronelismo


Reminiscências de menino a parte, historicamente o período do coronelismo se inicia no Brasil no século XIX ainda no período do império com a criação da Guarda Nacional em 1831, prosseguindo no período da república velha (1889 – 1930), perdendo força depois da revolução de 1930. Sua principal função seria a manutenção da ordem pública, contando para isso com (teoricamente) frações de tropa em cada município. O coronelismo se constituía em ricos fazendeiros, ou políticos influentes que compravam ou recebiam o título da mão do governo (a carta-patente da Guarda Nacional), ao qual eram dados diversos privilégios e status social, sendo que em certa época a sociedade civil se encheu de capitães, majores e coronéis, como no império foi cheia de marqueses, condes, e barões falidos. Como nota meritória deve-se destacar que os batalhões da Guarda também participaram da Guerra do Paraguai. O “Batalhão Patriótico Lavras Diamantinas” comandado por Horácio de Matos de Lençóis, ainda participou em 1926 dos episódios da caça aos “revoltosos” da Coluna Prestes na região. Havia também os coronéis com título sem valor militar de fato. Por fim depois da extinção da Guarda nacional logo após a proclamação da República, “coronel” passou a ser sinônimo de qualquer fazendeiro rico. Os coronéis rurais (e depois os urbanos, estes geralmente capitães de indústria) são uma verdadeira lenda social brasileira, e embora se associe imediatamente sua imagem com o nordeste brasileiro, se espalharam de norte a sul do Brasil (é só se lembrar da política do café com leite, dos coronéis paulistas e mineiros que dominaram a política nacional por anos). Eram latifundiários, oligarcas, patriarcais, violentos e arrogantes. Pode-se dizer que a sede da fazenda, o tradicional casarão com 6 a 8 janelas frontais (diziam que a quantidade de janelas indicava a riqueza do dono) com até 2 pavimentos, sótão (por vezes com janelas para atiradores) e porões, substituía a casa grande do engenho, pois tinha a mesma função opressora. Pode-se dizer, guardadas as devidas proporções, que continuavam com a mesma função do donatário da capitania hereditária no período colonial: auxiliavam, substituíam e faziam as vezes do poder central, que era fraco e vacilante, na administração regional e na manutenção da lei e da ordem vigente em seus domínios. A riqueza e a opulência da extensão de terras era conseguida, via de regra, pela grilagem de mais terras ou por herança; haviam coronéis que eram “ex-pobres” mas era raríssimo, pois era uma época de pouca mobilidade social, a maioria mesmo já era de família rica ou tradicional As esposas dos coronéis eram outro capítulo a parte. Ora eram submissas (a maioria), ora arrogantes, vingativas e algumas quase tão violentas quanto os esposos, verdadeiros “coronéis de saia”. Conheço inclusive o caso de uma delas que mandou aplicar um “clister” (lavagem intestinal, que antigamente era feita toscamente com um chifre de boi limpo e polido, com a ponta serrada que servia de funil) a base de pimenta malagueta numa das raparigas (amante) do seu marido. Algumas inclusive assumiam o lugar do Coronel como chefe do clã político quando este falecia, mas foram poucos casos. Com o tempo a elite agrária começou a se refinar e enviar seus filhos a Europa e aos grandes centros para estudar. Assim quando voltavam para a casa paterna os recém formados “Doutores”, engenheiros, médicos e advogados. Criava-se então, desde o fim do Séc. XIX, uma sociedade que endeusava os títulos acadêmicos (herdamos isso ainda hoje), algo compreensível numa época onde cultura era raro, fazer faculdade então era um artigo extraterrestre de tão difícil. As grandes casas rústicas ou não, no meio do sertão, do seringal ou do cafezal, eram repletas de boa louça, tecidos e mobiliário fino, embora nem sempre os proprietários tivessem o necessário refinamento para apreciá-los.


Os coronéis e a política


Os coronéis entraram no imaginário popular como os fazendeiros que se constituíam na riqueza e na força política que como um rolo compressor implacável decidia o destino das eleições e do governo do país. Soberanos em seus currais eleitorais obrigavam os seus empregados e agregados pela coação a fazer o infame e famoso voto de cabresto (voto forçado no candidato do patrão, chegando os coronéis a reter os títulos dos empregados). Ainda haviam as devidas manipulações, associações, fraudes (como a falsificação de documentos de eleitores para permitir o voto de menores, a repetição do voto ou pessoas votarem com nome trocado, o voto “fantasma” - onde o falecido “votava” lá do além, a falsificação de documentos eleitorais públicos, etc.), conchavos políticos, trocas de favores, compra de votos, ou simplesmente pela força das amas, com sedições, golpes violentos, além dos já tradicionais homicídios dos rivais, como diz esta anedota em que o coronel manda chamar o jagunço e diz:
- Você conhece o fulano de tal?
- Conheço não Coroné, mas já tá me dando uma raiva danada desse cabra.
- Deixe de bobagem home, é só pra mandar um recado!


A sua ousadia era tanta que mais de uma vez aconteceram embates contra o governo e seus representantes, como no caso sedição de Juazeiro/CE em 1914, a crise foi provocada pela intenção do interventor nomeado pelo Pres. Hermes da Fonseca, Marcos Franco Rabelo, de destituir e prender o famoso padre Cícero Romão Batista – que muitos consideram um “coronel sem farda” - dos cargos políticos que ocupava. O deputado federal Floro Bartolomeu a frente de um batalhão de jagunços auxiliados pelos romeiros que movidos por intensa fé no “Padim Ciço”, interviram na contenda batendo as tropas governamentais, que apesar de usar um canhão, foram rechaçadas. Depois disso os revoltosos seguem para a capital cearense e depoem o interventor Franco Rabelo, contando inclusive com auxílio de uma esquadra da Marinha de Guerra do Brasil, pois Floro Bartolomeu conseguira apoio federal.
A cidade de Princesa na Paraíba rebelou-se em fevereiro de 1930, no episódio conhecido como a “Revolta de Princesa”. O coronel José Pereira Lima insurgiu-se contra o governo de João Pessoa, arregimentou forças e causou muitas baixas no meio das fileiras da polícia da Paraíba (inclusive com um quase desconhecido massacre de uma companhia num casarão), sendo a cidade tomada de maneira absolutamente pacata depois da revolução de 1930 por tropas federais. Ou no caso da “Revolta Sertaneja ” (1919/20), na Bahia, onde os já citados coronéis Marcionillo Souza, Horácio de Matos, e Anfiófilo Castelo Branco reagiram contra a Lei Estadual n.º 1.104, de 09 de maio de 1916, que pretendia minar seu imenso poder regional. Os tentáculos dos coronéis se estendiam tanto no âmbito dos municípios como no âmbito estadual. Tudo dependia do seu prestígio e favores políticos: a nomeação de funcionários públicos, delegados de polícia, a administração da justiça, etc. Era comum darem guarida a homicidas, sendo seus “afilhados“, capangas e jagunços de certa forma intocáveis pela lei.


Armamento dos Coronéis

Evidente que os coronéis possuíam muitos desafetos e inimigos devido aos crimes que cometiam e a política acirrada, tinham de manter suas propriedades e rebanhos, bem como se defender dos assaltos de bandoleiros e cangaceiros (que o digam os potes e botijas enterrados e repletos de moedas e jóias que aparecem nas histórias de assombração, mudas testemunhas da riqueza desses homens...). Suas casas eram verdadeiras fortificações (já vi uma até com seteiras). Meu finado tio Zeca lá pelos anos 40 trabalhou na fazenda de um rico fazendeiro na fronteira da Bahia/Minas Gerais. Ele me contou que na casa da sede tinham caixas fechadas com dezenas de carabinas Winchester e 8 pistolas Parabellum, além de outras armas curtas!! Para economizar tempo na hora de limpar eles simplesmente jogavam óleo por cima e fechavam a caixa. O mosquetão Mauser (e por vezes o fuzil) realmente existia em grande número, inclusive podia ser comprado por encomenda, bastava um telegrama para a FN ou a DWM e caixas destas armas aportariam em Santos, Salvador ou Recife. Fuzis Mauser inclusive, são itens constantes em um catálogo de afamada casa paulista no início do Séc. XX. Fuzis e mosquetões Mausers Oviedo espanhóis aparecem com certa raridade também. Como detentores de arsenais governamentais, diversos fuzis oficiais estavam em sua posse, como os Comblain 11 mm de tiro único (a “combréa” da guerra de Canudos). Estes são citados no combate de Brotas de Macaúbas/Ba de 1914, usados por jagunços do Cel. Militão Coelho. Mas as preferidas mesmo eram as armas de repetição por alavanca (lever action), pois eram leves e rápidas, como são as Winchester (sendo “repetição” uma das alcunhas desta arma, que em diferentes versões, parecia uma praga por aqui), existiam também carabinas Marlin, e outras menos famosas no mesmo sistema. Carabinas Colt, e Remington por ação de bomba ou deslizante (pump action) também aparecem. Quanto aos fuzis além dos de ferrolho como o Mauser e um ou outro Mannlicher perdido por aqui, aparecem outras armas longas exóticas, mas em menor número, se vendo praticamente um pouquinho de tudo. Os revólveres na sua maioria eram de origem americana (principalmente Colt e SW), além de seus clones espanhóis, sendo que destes os mais famosos eram os populares “H.O.” (o correto é “O.H.” - Orbea Hermanos da cidade de Eibar), mas se encontram muitos outros espanhóis como os Tanque, os Corso, BH, GH. Etc. Etc. Etc. Para mais umas 20/30 marcas espanholas. Os revólveres Nagant em calibre 440, de dotação do Exército Brasileiro foram extremamente comuns entre os civis no nordeste do Brasil (e como relíquia até os dias de hoje se acham muitos). Creio que nada impede que alguns deles tenham sido desviados de quartéis na época do coronelismo. Os calibres mais comuns nos revólveres da época eram o 32 SWL, 38 SPL, .44 SW russo, 44-40, e em regiões do mato-grosso o .44 SPL. Evidente que sempre se pode ver algum em calibre mais raro ou exótico. Ouvi falar de pelo menos um exemplar de Colt Peacemaker 1873 em calibre 44-40 que estava e mãos de um rico fazendeiro, arma bem rara por estas plagas. Dentre as pistolas, as alemãs da casa Mauser, notadamente a C-96 de 7,63 mm alcunhada de “caixa de pau” por causa do coldre-coronha de madeira, arma predileta do Cel. Horácio de Matos que febrilmente usou uma nos combates de 1918 em Brotas de Macaúbas/Ba contra o também Coronel Militão Rodrigues Coelho, num entrevero onde quase 500 jagunços lutaram, cavando trincheiras e sitiando várias fazendas e povoados, e desafiando e entrando em combate com uma expedição da Força Pública Estadual que havia ido em socorro de uma das partes. A contenda (nome inclusive de uma das cidades da região: Contendas do Sincorá, batizada segundo contam em lembrança as freqüentes rixas entre os poderosos nesta área) durou cinco meses, com um saldo de centenas de mortos. Curiosamente a cara e bem feita Mauser C-96 era bem popular no Nordeste. Um aparte deve ser feito ao sistema de municiamento destas armas, que usavam um carregador fixo municiado por uma lâmina, e quando estava cheio com os 10 cartuchos o povo via nele os dentes de um pente, surgindo assim a expressão leiga “pente” usada até os dias de hoje para denominar qualquer tipo de carregador de armas semi ou automáticas. Como as Mauser foram as primeiras semi-automáticas a chegar por aqui, seu nome por muitos anos foi sinônimo de pistola, “fulano tem uma mausa”, se fosse grande era uma “mausona”, se pequena ”mausinha”. Fato pouco estudado é que dizem que a Força Pública de Pernambuco usava um clone espanhol das Mauser, a pistola Royal com seletor de fogo automático, sendo inclusive arma das tropas “volantes” que combatiam o cangaço. As pistolas Parabellum mod. 1906 (a maioria do contrato militar brasileiro, raras eram comerciais) e 1908 de 7,65 mm e 9 mm Luger, também foram muito apreciadas, várias fotos de época mostram seu uso, inclusive de variantes raras destes modelos. De outras pistolas se vêem principalmente as Belgas (FN-Browning, Jieffeco, Pieper, e outras marcas menos famosas), e cópias espanholas do tipo Ruby, e americanas a maioria da Colt, aparecem ainda algumas austríacas como as Steyr em diferentes modelos, inclusive as 1911 militares. A maioria esmagadora era em calibres 6,35 mm e 7,65 mm, mas algumas que calçam munições incomuns também são vistas. Raras são as pistolas semi- automáticas inglesas, mas de quase todas as marcas e modelos mundiais se vê um pouco. Espingardas existiam em profusão para a caça, a maioria eram “cartucheiras” belgas, inglesas ou espanholas, sendo que algumas ganharam fama e notoriedade entre a população (como as espanholas Victor Sarasqueta).


O desarmamento de Getúlio



A justiça dos coronéis era rápida e brutal, os adversários eram eliminados nas infames tocais, emboscadas feitas por jagunços ou pistoleiros “avulsos” contratados para tal fim, quando não eram as escondidas em alguma estrada deserta, eram a luz do dia mesmo para que todos vissem e temessem. Como até o judiciário era engessado pelo poderio político, pouco podia fazer o populacho no caso de uma ofensa perpetrada por um destes poderosos (além dos assassinatos, se ouve falar principalmente em casos de abuso sexual e surras). Alguns coronéis no Nordeste e norte de Minas Gerais chegavam até a usar a seu serviço bandos de cangaceiros e bandoleiros, bem como lhe davam guarida e suporte. É fato mais do que sabido que Lampião conseguia seus víveres e munição através de extensa rede de coiteiros, inclusive alguns coronéis, e até com a polícia que o perseguia! Para ilustrar tais desmandos cito certa feita em 1920 e alguma coisa em Vitória da Conquista/BA, quando duas importantes famílias rivais em pleno centro da cidade chegaram, como em um bom western spaghetti que se preze, ao meio-dia a trocar intensa fuzilaria encastelados em suas fortalezas, parando por completo a cidade. Evidente que ninguém foi preso. Com tanto poder assim que peitava governos e desafiou as forças da lei mais de uma vez, só restava a Getúlio “quebrar a espinha dos coronéis”, minar seu poder e evitar obviamente a contra-revolução. Assim, logo após a revolução houve o famoso desarmamento iniciado em 1930, com a promulgação do regulamento 105 (o famoso R-105 do exército nacional, uma lei draconiana que regula a fabricação, o comércio, e a posse de armas de fogo no Brasil, em vigor até hoje com algumas mudanças). As milícias dos coronéis foram dispersadas, chefes políticos presos, humilhados e levados as capitais. Assim foram presos alguns dos grandes coronéis da Bahia como Horácio de Matos (assassinado com um tiro pelas costas em Salvador no dia 13 de Maio de 1931, no Largo 2 de julho, pelo Guarda Civil Vicente Dias dos Santos, num crime de mando segundo consta encomendado pela viúva do Major Mota Coelho), Marcionillo Antônio de Souza (me informa seu bisneto Luiz Fernando, que ele morreu em 1943 aos 84 anos e não aos 75, e que não deixou os 3 filhos do segundo casamento na miséria, isso é uma informação errônea espalhada hoje de forma virtual.), Anfilófilo Castelo Branco de Remanso, dentre muitos outros nomes menos famosos historicamente, mas igualmente poderosos. O desarmamento levado a cabo na década de 1930 foi bem profícuo na Bahia, sendo apreendidos nas fazendas e cidades da região da Chapada Diamantina (as famosas “lavras”) segundo consta cerca de 30.500 fuzis!!!, 376 kg de munição, 236.000 cartuchos, 2 fuzis-metralhadores e 2 máquinas de recarga de munição (creio que provavelmente eram as máquinas de carregar os pentes dos fuzis metralhadores FMH, pois não se praticava recarga naquela época). Os números certamente parecem absurdos, mas deve-se lembrar que não havia uma legislação rigorosa a época restringindo tipos de armas, nem tampouco havia controle sobre as importações e o comércio. Via de regra os coronéis importavam de maneira direta com encomendas nas grandes casas que vendiam armas de fogo ou a caixeiros viajantes (inclusive muitos sírios e libaneses apelidados indevidamente de “turcos”) que levavam estas armas e munições de porta em porta. Há até relatos confiáveis que dão conta de coronéis que possuíam além de boa louça inglesa, metralhadoras Lewis, da mesma origem, bem como de outros modelos. Só do Cel. Horácio de Matos e seu clã, as tropas do governo tiraram 3.000 armas longas de tipos variados, além das armas curtas (pistolas e revólveres, até mesmo as “facas de ponta” foram apreendidas). A chapada era um local pródigo - muito antigamente - para se “garimpar” e achar armas raras.
Da Região de Maracás/Ba, sob a influência de Marcionillo, dois batalhões federais recolheram cerca de 2200 armas longas e curtas, e 50 mil cartuchos.
De Vitória da Conquista-Ba, fui informado em conversas com moradores mais antigos que conheceram de perto aquela época violenta (o chamado “tempo do carrancismo”) onde a “política” terminava seguramente em tiros, que se retirou um caminhão e um automóvel lotados de armas de fogo variadas apreendidas. Um velho armeiro me falou certa feita que trabalhando como encanador, ao entrar num porão de tradicional família conquistense na década de 70, achou num canto ao lado da tubulação de ferro, um caixote de munições de diversos calibres, totalmente “zinabradas” (oxidadas), e certamente imprestáveis. Exemplos que corroboram a lenda corrente de que quem não queria perder sua arma a enterrou em porões ou em locais seguros, onde a “gente do governo” não andava. Cito um velho revólver S & W DA nº 3 cal. .44 totalmente carcomido que se achou no porão de uma antiga fazenda que foi de uma “coronela”, localizada próximo ao sul da Bahia, bem como outro achado embrulhado em um couro em MG, ou uma carcomida carabina FN-Mauser 1922 enterrada no mesmo estado. Há boatos até de uma metralhadora pesada (Hotchkiss 1914) abandonada em uma fazenda de MG pela coluna prestes, bem como de fuzis achados em diversos locais de MG, SP e RS, todos abandonados por revolucionários ou tropas governamentais.


pelotão da morte na cidade de Jequié na Bahia em 1930 em ação desarmamentista. As pilhas são de carabinas Winchester e pistolas garruchas.

O coronelismo foi uma chaga. A marca viva de uma época de desigualdade social e econômica, de violência, de impunidade, de atraso e falta de cultura, onde a maioria da população era vítima de homens que manipulavam a sociedade a seu bel prazer através de uma política baixa, interesseira, corrupta e descompromissada socialmente... Peraí! Mas de que época afinal estamos falando, do início do Séc. XX ou do XXI ? MUDA BRASIL!!!!